Demóstenes Torres: “Janja, a luz de Lula quando a festa acabou”

Publicado em 3.02.2023 às 14:58

Há momentos em que nem o vento bate em nossas costas, apenas o frio da lâmina dos punhais cravados pelos judas. Assim foi em 2012, o ano de hecatombe sem precedentes em minha existência.

Acostumado a glórias e homenagens desde cedo (aos 34 anos já era procurador-Geral de Justiça, até o presente ainda o mais novo da carreira), senti o peso da roda-gigante que me pôs na parte de baixo por um bom tempo, um tempo ruim. Venci várias batalhas jurídicas e administrativas, escudado na certeza da inocência. Não sofri com o “Japonês da Federal” na minha porta, muito menos hostilidades em aeroportos ou outros locais públicos, exceto algumas caras feias e olhares hostis.

Apesar de ter sido a vítima pioneira de campanha acirrada de fake news no Brasil, jamais fui sequer acusado de lidar criminosamente com dinheiro público e continuo sendo o político mais votado do meu Estado, 2.158.812 votos.

Os “amigos” fugiram pelo ladrão, tipo os amigos do alheio, confirmando a tese de que não existe ex-amigo, quem deixou de ser é porque nunca foi. Então, se descobre quem realmente gosta de você. Cito alguns, e peço desculpas desde já pelas omissões: Áureo Ludovico, Marcos Lima, Clésio Andrade, Wellington Salgado, Lobão Filho, Ovídio Martins, Eládio Mesquita, Veiga Braga, Nilo Mendes, Homero Sabino de Freitas, France Di Guimarães, Valcenôr Braz, Francisco Oliveira, Márcio Fernandes, Marcelo Franco… Claro que a memória falha, esqueci alguns, mas não muitos, pois não foram tantas as exceções em meio aos cardumes de traíras. Os mais vorazes eram os colegas do Ministério Público, ao qual proporcionei como senador, na Reforma do Judiciário, o direito de simetria com a Magistratura. A conquista foi fruto de negociação direta com dois gigantes do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim e Gilmar Mendes, encarregados pela Corte de articular com parlamentares os termos da emenda à Constituição.

Uma lição para todos: nunca abandonem suas raízes. Logo, logo, mais cedo, mais tarde, será preciso voltar, será necessário ter para onde, será vital ter para quem. Muitas vezes, dolorosamente, com a sentença de Haroldo Barbosa: “A dor da gente não sai no jornal”. A meu respeito, sem respeito algum, saiu tudo em todo lugar, inclusive a minha dor, menos a verdade. Uma amiga, repórter do “Estadão” (sim, há), disse-me para me preparar porque a primeira a me abandonar seria a minha mulher, regra entre políticos caídos em desgraça. Pois aconteceu justamente o contrário. Flávia aguentou o tranco de um Napoleão em Elba. Do auge ao barro basta um sopro e Flávia resistiu a tempestades.

Onde estavam os “éticos”, o partido, o MP, os íntimos, os que sugaram a vida inteira? No mínimo, omissos. Quando passava, um ou outro mudavam de lado no Túnel do Tempo, um local no Senado. Nem aí pra eles, pois o que contava era que a Flávia não mudou de lado, o esquerdo do meu peito varado de flechas. Ela se agarrou comigo em todos os momentos: “Estude o processo, acabe com a insônia, não beba tanto, arrumei uma sala para você receber pessoas e estudar, cuide de seus filhos e sua neta”. Aguentou a maior bucha, não se impacientou, foi resiliente, companheira, amiga e mulher.
Lula, o PT e mais um monte de gente esteve por trás de minha cassação, o que não é novidade para ninguém. Logo em seguida, foi Lula que, por motivos diversos, entrou na infelicidade. E que tragédia! Um juiz parcial, que queria se tornar político e virou senador, em conluio com um grupo de procuradores da República desvairados, cujo líder se tornou deputado federal, fizeram Lula transpor sem guia o portão do inferno, e lá ficou por amargos 580 dias. A síntese dantesca com busca e apreensão, condução coercitiva, prisão, o opróbrio, a morte em vida severina, o enterro político. Imagino que tenha na pele o dilema drummondiano magistralmente versejado no poema “José”.
A festa acaba, a luz apaga, o povo some, a noite esfria. O bonde não vem, o riso não vem, não vem a utopia. Mas Deus vem em forma de mulher trazer a salvação. Para mim, a Flávia; para Lula, Rosângela, a Janja. E a gente nem liga mais para a luz apagada, a festa acabada, povo sumido, sem tribuna para discurso. Tudo o que nos resta é a família, no meu caso a Flávia, no do Lula a Janja. Ou seja, não nos falta nada. Em Curitiba, tudo fugiu, tudo mofou e agora, Lula? A fuga e o mofo não o atingiram, pois Janja estava ali, no terreno em frente à Superintendência da PF, saudando-o junto com a vigília de seguidores fiéis com bom dia, boa tarde, boa noite, 13 vezes, repetidamente. E recomeçando a cada manhã, Janja no coro do setor Santa Cândida, dupla homenagem no bairro da sentinela.
Não a conheço, acho que não irei conhecê-la, mas desde os tempos do paradoxal reino da República de Curitiba sabe-se que Janja é notável. Quem estava com ele no escuro e frio ambiente da sala feita cela? Quem enxugou-lhe as lágrimas? Aonde ele foi buscar ânimo para ser um novo Atlas? Quem lhe deu forças para ressuscitar? De onde lhe veio a inspiração para voltar a ser presidente do Brasil?
De 60 milhões de nomes nos títulos de eleitor que optaram por seu número no 2º turno, a resposta para essas e todas as demais perguntas está no apelido único da pessoa ímpar, Janja. É uma mulher moderna como Flávia, profissional, estuda, trabalha, não precisa de permissão para falar, dá sugestões. Talvez seja isso que incomode, o seu papel fora de casa, da casa que demora a ficar pronta, o Palácio da Alvorada.
Tive a ventura de viver desde a infância cercado de mulheres fortes, independentes, dedicadas, que entre outras virtudes me ensinaram a respeitá-las todas, as santas, como minha mãe, Luzia, casada com meu pai, Avelomar, durante 58 anos (quando ela morreu, ele se foi 3 meses depois); as do futuro, como as minhas filhas Aline e Glória, minha enteada Maria Fernanda, minha neta Ana Beatriz, 16 anos, 1º voto em Lula; as intelectuais, como Ruth Cardoso, que tive a honra de conhecer pessoalmente; as do lar (que demérito há?) como Marcela Temer, talvez o maior contingente do Brasil; as religiosas, como Michele Bolsonaro.

Lemos e ouvimos o itabirano Carlos Drummond, troquemos de música nos mantendo com os poetas mineiros, agora Fernando Brant, que escreveu “Maria, Maria” para vozes privilegiadas, de Milton Nascimento a Elis Regina. É dessa canção que me lembro ao ver Janja com Lula. Encarar o que ela superou é sinal de “um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta”. Para ficar 580 dias num lote baldio olhando o prédio em frente por ali está o seu amor “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter gana, sempre”. Flávia atravessou comigo o pântano engendrado para me afogar. Janja nadou com Lula pelo vale de lágrimas. Não largaram as nossas mãos. Seres raros assim possuem “a estranha mania de ter fé na vida”.

*Demóstenes é advogado, ex-senador e procurador de Justiça aposentado