• Há 75 anos, a rendição incondicional da Alemanha nazi

    Publicado em 8.05.2020 às 07:00

    Antes do dia 8 de maio, a Alemanha nazi por várias vezes e em várias frentes agitou a bandeira branca, mas a única capitulação que conta e que ficou para a História como fim da guerra na Europa foi aquela, organizada pelo Exército Vermelho, em Karlshorst, nos arredores de Berlim.O marechal Wilhelm Keitel entrou na sala e encontrou reunidos quatro chefes militares aliados: o marechal soviético Grigori Zhukov, que orquestrara a cerimónia, o marechal britânico Arthur Tedder, o general norte-americano Carl Spaatz e o francês De Lattre de Tassigny.

    O chefe do Estado-Maior alemão saudou com o bastão os inimigos, que o aguardavam sentados. Ninguém retribuiu a saudação. Keitel, considerado um lacaio de Hitler e por isso conhecido pela alcunha de “Lakeitel”, estava na sala apenas para assinar a capitulação. Tenso e nervoso, ainda deixou cair o monóculo, mas depois assinou com uma pose tão digna como pôde. Ano e meio depois, seria enforcado como criminoso de guerra, por ordem do Tribunal de Nuremberga.

    Na véspera, na cidade francesa de Reims, o general alemão Jodl conseguira que o norte-americano Dwight D. Eisenhower aceitasse dele a rendição incondicional, em nome do Governo de Flensburg, encabeçado pelo almirante Karl Dönitz, depois de Hitler se ter suicidado. A capitulação de Reims, a 7 de maio, representava uma violação do compromisso entre os Aliados, de não deixarem à Alemanha nazi a escolha do interlocutor ou do local para a rendição.

    Um general russo de segunda linha, Susloparov, colocado como oficial de ligação junto do Quartel-General de Eisenhower, foi convidado a participar na cerimónia, para emprestar-lhe uma caução soviética apenas formal. Surpreendido pelo convite, tentou ainda obter instruções de Estaline, mas em vão. Assinou com reservas e, na verdade, Estaline enfureceu-se ao saber do facto e mandou organizar, para o dia seguinte, a segunda e verdadeira capitulação.
    Ao general Jodl, de nada servira ter convencido Eisenhower. E também ele viria a ser julgado em Nuremberga e enforcado ao mesmo tempo que Keitel.”Rendição incondicional”
    A irritação de Estaline com a cerimónia de Reims explica-se pelos antecedentes históricos desse momento decisivo que foi o Dia da Vitória na Europa. Os antecedentes estão marcados pela política britânica de apaziguamento do nazismo a culminar em 1938 no Pacto de Munique e, depois, pelo seu equivalente soviético a culminar em 1939 no Pacto Molotov-Ribentropp.
    Durante a guerra, em momentos diversos, os aliados ocidentais suspeitaram a URSS de aproximações à Alemanha nazi, mas sobretudo a URSS suspeitou disso o bloco anglo-americano. As suspeitas soviéticas pareciam mais plausíveis, porque era com os aliados ocidentais que a Alemanha nazi queria entender-se.
    Sujeita a perdas de milhões de vidas e a privações para toda a população, a URSS organizou uma campanha pela abertura da “segunda frente” aliada na Europa (sobre a distribuição do esforço de guerra, dizia Churchill que a USS punha o sangue, os EUA o dinheiro e o Reino Unido a paciência). A URSS, suportando o peso mais devastador da guerra, tinha interesse em ver os aliados ocidentais a combaterem também na Europa continental.

    O bloco anglo-americano, por seu lado, disfrutava as vantagens de ser poupado a um confronto directo com a Wehrmacht e não se apressava em organizar um desembarque no Velho Continente. Do lado soviético havia a suspeita de que a morosidade aliada reflectisse o desígnio calculista de deixar Alemanha e URSS desgastarem-se mutuamente, para os aliados ocidentais poderem depois desembarcar na Europa quando fosse mais fácil tomarem conta de um campo de ruínas e sobreporem-se a dois inimigos exangues.

    Daí à suspeita de negociações secretas para uma paz separada, ia um passo. Mas os aliados ocidentais recordavam como o apaziguamento anglo-alemão de 1938 dera lugar ao apaziguamento sovieto-alemão de 1939, e não queriam correr o risco de voltar a desencadear algo semelhante. Queriam portanto dar à URSS uma garantia palpável de que não iriam negociar com a Alemanha condições para uma paz separada.

    A Cimeira de Casablanca, entre Churchill e Roosevelt, realizou-se sem a presença de Estaline, no início de 1943, quando ainda se travava nas ruínas de Estalinegrado a batalha decisiva para a viragem da guerra. Para darem à URSS a garantia esperada, os dois líderes ocidentais definiram em Casablanca a política de exigir da Alemanha uma “rendição incondicional”, e nada menos do que isso.Segunda frente e paz separada
    Os sucessivos adiamentos da Segunda Frente alimentaram a desconfiança soviética sobre as intenções dos aliados ocidentais. Enquanto a Alemanha nazi construía a “Muralha do Atlântico” para poder enfrentar um desembarque no Mar do Norte, os aliados organizavam a Operação Torch (desembarque no norte de África, em novembro de 1942) e a Operação Husky (desembarque na Sicília, em julho de 1943).
    Este, embora lhes tenha servido de trampolim para um desembarque na bota de Itália, destinava-se evidentemente a ficar sem seguimento no resto do continente, resguardado por trás da barreira natural dos Alpes, que nenhuma força militar transpusera desde os tempos de Aníbal, o cartaginês.
    Além destes desembarques, houve ainda contactos com o regime fascista húngaro no sentido de este colaborar com um eventual avanço de tropas anglo-americanas desembarcadas no Mar Adriático, que progredissem para norte e daí para ocidente, limitando assim a preponderância soviética na Europa de Leste. Advertido dessa diplomacia secreta, Hitler mandou invadir a sua aliada Hungria em março de 1944.
    Aos olhos da liderança soviética, os aliados dedicavam-se portanto a estabelecer posições na bacia do Mediterrâneo, que poderiam ser-lhes úteis para a negociação do mapa emergente da guerra, mas evitavam assumir os custos de um envolvimento directo e frontal no principal teatro de operações.
    Por outro lado, se é certo que Hitler se tinha tornado inaceitável como interlocutor para qualquer negociação com os aliados, como deixava claro a fórmula de “rendição incondicional”, não é menos certo que a hierarquia nazi fervilhava de planos para chegar à fala com os mesmos aliados e estabelecer com eles uma frente comum anti-soviética.
    Entre esses planos, o mais notório foi certamente o dos conjurados de 20 de julho de 1944, que projectaram eliminar Hitler e consumar um golpe de Estado para afastar do poder o núcleo hitleriano mais irredutível. Pretendiam depois oferecer-se aos aliados como interlocutores respeitáveis e esperavam mesmo ter uma palavra a dizer sobre o mapa do pós-guerra. Não surpreende portanto que tenha sido tão reservada a reacção soviética às notícias do golpe de Stauffenberg, mesmo antes de este falhar.
    Outro plano terá sido o de Himmler, que sem dúvida estendeu os seus tentáculos em diversas direcções, e enviou febrilmente sinais de querer dialogar com o bloco anglo-americano, sempre em vão. Era demasiado cedo para que o anticomunismo do establishment norte-americano e da City londrina pudessem branquear o homem que era, mais do que nenhum outro, responsável directo pelos campos de extermínio.
    Ao “Führer”, foram ocultadas as sondagens de Himmler no sentido de uma paz separada, porque eram diligências que pressupunham o seu afastamento do poder. Mas ele próprio alimentou por um momento essas fantasias, julgando mesmo que poderia fazer parte do guião, quando lhe chegou, em 12 de abril, a notícia da morte de Roosevelt.
    Embora o falecido presidente norte-americano tivesse sem dúvida um empenhamento na aliança com a URSS que faltava ao seu sucessor, mais uma vez era demasiado cedo para que Truman rompesse as pontes com Moscovo, e demasiado tarde para que as restabelecesse com um ditador já cercado no seu bunker de Berlim.
    Segunda Frente e batalha de Berlim
    Os sucessivos adiamentos da Segunda Frente levavam entretanto aos conhecidos sarcasmos em curso nos círculos militares soviéticos, como o de os aliados não deverem desembarcar na Europa, porque se não ainda correriam o risco de deparar com algumas tropas alemãs. O Exército Vermelho, sofrendo ocasionalmente derrotas e recuos, e sofrendo sempre perdas imensas, foi ganhando terreno à Wehrmacht.
    Mas, a partir de certa altura, deixava de convir aos próprios aliados ocidentais permanecerem ausentes da Europa continental, com o risco de que a URSS derrotasse a Alemanha nazi sem a participação de tropas terrestres britânicas e norte-americanas. Para Londres e Washington seria um cenário de pesadelo que o Exército Vermelho chegasse a Berlim e continuasse depois a sua progressão para ocidente, como força libertadora da Dinamarca, da Holanda, da Bélgica, da própria França. Os adiamentos da Segunda Frente tinham-se tornado insustentáveis.
    Depois do desembarque na Normandia, notou-se uma acentuada tendência da Wehrmacht para concentrar as suas melhores forças no oriente, a combaterem o Exército Vermelho e para negligenciar a defesa a ocidente. A única operação assinalável que ocorreu na frente ocidental, a contraofensiva das Ardenas, foi aliás organizada de forma tão inepta que quase parecia calculada para falhar.
    E depois dessa, em março de 1945, ocorreu o famoso episódio da Ponte de Remagen (na foto), que a 9ª Divisão Blindada norte-americana se surpreendeu por encontrar intacta, como se a Wehrmacht estivesse a estender-lhe uma passadeira vermelha para ganhar terreno ao exército soviético. 

    Globalmente a distribuição de forças da Wehrmacht, identificada pelo historiador Richard Overy, correspondia a uma resistência desesperada a oriente e a uma retirada com algumas escaramuças ou batalhas menores no ocidente: 285 divisões na frente leste, para apenas 58 divisões a ocidente. As perdas alemãs também correspondiam a esta distribuição de forças: 80 por cento ocorreram a leste.
    Apesar de todos os adiamentos da Segunda Frente, a própria estratégia da Alemanha nazi tinha voltado a tornar viável uma corrida entre o Exército Vermelho e as forças aliadas tendo Berlim como meta. Estaline respondeu à ameaça de uma corrida por Berlim com um controlo mais apertado do Exército Vermelho. Assumiu ele próprio a chefia do Estado-Maior e passou a despachar directamente com os dois principais comandantes da ofensiva soviética.
    O marechal Zhukov fora o herói do cerco de Leninegrado e tornara-se a principal figura da guerra. O ditador soviético sabia quanto necessitava da competência militar de Zhukov, mas ardia em ciúmes pela grande popularidade deste. Mais tarde, depois da guerra, Estaline não se atreveria a mandar prendê-lo, mas iria desterrá-lo para uma região obscura e periférica dos Urais. Durante a guerra, procurou retirar protagonismo a Zhukov, encorajando a rivalidade e as ambições de um outro grande chefe militar, o marechal Konev.
    Por isso se absteve Estaline, na reunião do Estado-Maior que deu luz verde à ofensiva final sobre Berlim, de definir claramente qual dos dois marechais devia entrar na capital alemã. Ao contrário do que era seu hábito, deixou o tema no vago e deu instruções para lá entrar quem primeiro se achasse em condições de fazê-lo. O que era suposto constituir uma ofensiva militar de envergadura sem precedente na História, quanto possível coordenada, tornava-se de certo modo uma corrida de velocidade entre dois exércitos e entre dois comandantes.
    O resultado foi que, nos momentos finais do assalto ao Reichstag, onde estavam barricados milhares de militares alemães, as tropas de Konev notaram a certa altura que estavam a bombardear as tropas de Chuikov, um dos generais de Zhukov. 

    Finalmente, se Eisenhower pôs de lado qualquer veleidade de chegar primeiro a Berlim, não foi devido ao “génio militar de Estaline”, e sim a um complexo de factores políticos, militares e económicos. Por um lado, o chefe das forças norte-americanas e o seu homólogo britânico Montgomery sabiam que o prémio político da tomada da capital era largamente compensado pelo prémio económico da ocupação das regiões mais industrializadas da Alemanha, a começar pela bacia do Ruhr.
    Por outro, Eisenhower fazia contas à carnificina que seria a tomada de Berlim e calculava que aí perderia pelo menos 200.000 homens – e mais uma vez era preferível deixar esse fardo ao Exército Vermelho. E, finalmente, confiava em que a URSS cumpriria os seus compromissos de dividir a capital em zonas de ocupação, mesmo sem os aliados ocidentais lá terem estado. E assim foi.O fim de Hitler
    Do lado alemão, era o caos, bem retratado no filme “A queda”, com detalhes históricos cuidadosamente coligidos pelo consultor histórico, o especialista alemão Joachim Fest. Hitler continuava a fazer planos de defesa mirabolantes com divisões que já só existiam no papel e que os seus generais não se atreviam a descrever-lhe como destroços andrajosos do rolo compressor soviético.
    Fazia igualmente planos de sublevação popular contra as “hordas asiáticas”, e ninguém se atrevia a explicar-lhe que os velhos da Volkssturm ou os fedelhos da Juventude Hitleriana nunca tinham passado de uma tropa fandanga, que perante as forças de elite soviéticas só podiam ser vistos como anedota de gosto duvidoso.
    Quando, a certa altura, a realidade se impôs no bunker da chancelaria, porque já se tornara impossível não ouvir os canhões que troavam a poucas centenas de metros, o chefe nazi admitiu a inevitabilidade da derrota e, como ainda relatou Martin Bormann, encontrou para ela uma explicação racista como todas as que tinham sido trave mestra da sua visão do mundo. Mas o racismo que antes desprezava os judeus e os eslavos virou-se subitamente contra o povo alemão: se estava a ser derrotado era por ser, ele próprio, a “raça inferior”. E os eslavos, se foram capazes de ganhar a guerra, era certamente por serem, afinal, a “raça superior”.
    Momentos de euforia, como o da morte de Roosevelt, já só abriam parêntesis cada vez mais breves, no colapso psicológico de Hitler. Os seus mais devotos seguidores abandonavam-no, uns atrás dos outros: Rommel, o seu general preferido, intimado a suicidar-se por envolvimento no golpe de Estado de 20 de julho; Himmler, o “fiel Heinrich”, que afinal tentou a todo o transe negociar secretamente uma paz separada com os aliados e deixou correr o golpe de 20 de julho, para ver como terminava; Speer, que sabotou a ordem de ”terra queimada”; Göring, que anunciou por rádio assumir os poderes do “Führer” cercado em Berlim.
    Mesmo no seu círculo mais íntimo, a estabilidade anímica de Hitler deixara de inspirar confiança. Segundo diversas testemunhas suas contemporâneas, Eva Braun apaixonara-se pelo marido de sua irmã, o general-SS Hermann Fegelein, e fantasiava fugir com ele, rompendo o cerco entretanto já fechado sobre Berlim. Hitler, que depois de os seus últimos cortesãos já conhecerem a história continuaria sempre a ignorá-la, mandou fuzilar Fegelein por deserção e casou com Eva Braun em 30 de abril, para logo a seguir se suicidar com ela.
    A história corrente de que, corajosamente, se suicidara a tiro de pistola é corroborada pelos peritos ingleses mas negada pelos russos, que afinal foram quem ficou na posse exclusiva do seu cadáver carbonizado. O general Helmuth Weidling, último comandante militar de Berlim, emitiu em 2 de maio uma ordem para que todas as tropas se rendessem, comunicando que o “Führer” se tinha suicidado, deixando “pendurados” [in Stich] todos os que lhe tinham jurado fidelidade.

    O general Hans Krebs, último chefe de Estado-Maior do Exército, tentou entretanto negociar com os russos, que o receberam cordialmente com cognac, mas lhe explicaram que só aceitavam rendição incondicional. Krebs bebeu o cognac, voltou às suas linhas e suicidou-se. O mesmo fez Joseph Goebbels, nomeado por Hitler para chefiar o governo pós-hitleriano: combinou com a mulher, Magda, assassinaram todos os filhos de ambos e suicidaram-se a seguir.
    A capitulação da Wehrmacht não era ainda o fim do conflito, que no Extremo Oriente ia durar até 2 de setembro. Mas, depois de ter deposto as armas a principal potência do Eixo, já só era uma questão de tempo até o Japão se render igualmente.

    Nos meses seguintes, o “Império do Sol Nascente” fez chegar aos Estados Unidos, pelos mais diversos canais, mensagens significando a sua vontade de capitular. As mensagens foram sempre ignoradas, porque o presidente Harry Truman e a sua entourage queriam experimentar a bomba atómica sobre alvos japoneses, para demonstrarem espetacularmente a sua supremacia militar, intimidarem a URSS e desse modo reivindicarem a primazia nas decisões do pós-guerra.

    RTP, emissora pública de Portugal