Covid-19. Médicos russos alvo de desconfiança no seu país
Em vez de aplausos e reconhecimento pelo esforço na linha da frente da luta contra a pandemia, os profissionais de saúde na Rússia enfrentam um clima de desconfiança e hostilidade. Os profissionais do setor estão a ser alvo de processos disciplinares ou mesmo de demissão por criticarem a resposta do Governo à Covid-19.Teorias de desinformação e conspiração são predominantes nos meios de comunicação russos e nas redes sociais. Nas últimas semanas, vários rumores têm circulado no país sobre a Covid-19, o que tem contribuído para denegrir a imagem dos profissionais de saúde e corroer a confiança da população.
Os rumores alegam que o vírus foi criado pelos médicos para controlar a sociedade, que os profissionais de saúde estão a ajudar o Governo a esconder a verdadeira dimensão das vítimas ou que estão a atribuir falsamente mortes à Covid-19 para receber mais dinheiro do Governo.
À CNN, Alexandra Arkhipova, antropóloga social em Moscovo, explica que a desconfiança dos profissionais de saúde reflete uma suspeita mais ampla do Estado. Enquanto alguns russos olham para os médicos como heróis, muitos consideram-nos “traidores ou vilões” enquanto marionetas de planos para controlar a população.
“O povo russo não acredita em medicina estatal, apenas acredita em médicos que conhece pessoalmente”, disse Arkhipova, referindo-se ao serviço nacional de saúde da Rússia.
“É uma crise de confiança que a epidemia realçou”, acrescentou a antropóloga. “Não vi esta atitude em nenhum outro lugar”, sublinhou.
Para além da desconfiança, os profissionais de saúde russos têm vindo a ser ameaçados de demissão ou mesmo de um processo disciplinar por criticarem a resposta do executivo à pandemia e de reportarem escassez de equipamentos de proteção.No início de maio foi reportado que três médicos russos que tinham reclamado a falta de material para combater a pandemia caíram de janelas de prédios. Dois acabaram por morrer e um ficou em estado crítico. As autoridades de saúde consideraram os dois óbitos suicídios.
Tatyana Revva, especialista de cuidados intensivos num hospital a sul da Rússia, sofreu um processo disciplinar depois de ter publicado um vídeo que se tornou viral sobre a falta de equipamentos de proteção individual.
“Fui chamada à polícia e dei um depoimento com um advogado, mas uma outra declaração contra mim foi enviada para o escritório do procurador”, disse Revva à CNN.
Os investigadores verificaram a disponibilidade de equipamentos e ventiladores no seu hospital, mas a especialista explica que “a verificação foi realizada um mês depois de ter sinalizado os problemas”. “Podem imaginar a quantidade de material que foi adquirido num mês depois de o vídeo se ter tornado viral”, sublinhou Revva.
O diretor do hospital denunciou-a a um procurador por “espalhar informações falsas”, um crime punível com uma multa até 25 mil dólares ou pena de prisão.
“Somos dispensáveis”
Stella Korchinskaya, profissional de saúde de um hospital na região de Moscovo, também criticou a falta de equipamentos e afirma que membros da direção do hospital lhe disseram que estavam apenas a tratar doentes com pneumonia.
“Quando a epidemia começou, nós praticamente não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção básicos”, disse à CNN a profissional de saúde, agora infetada por Covid-19.
“Tivemos que nos proteger como conseguimos. Eu comprei respiradores pela internet e comprei óculos numa loja de ferragens com o meu próprio dinheiro, antes que fechassem durante o confinamento”, revelou Korchinskaya à CNN.
“Não entendo por que nos tratam como se nós fossemos dispensáveis”, lamentou à agência Associated Press (AP) Nina Rogova, enfermeira na Rússia que diz estar a ser ameaçada de demissão depois de ter relatado falta de equipamentos no seu hospital aos meios de comunicação. De acordo com a AP, os números de demissões entre profissionais de saúde dispararam nas últimas semanas. Só na região de Kaliningrado há registo de 300 despedimentos nas duas últimas semanas, dezenas de paramédicos alegadamente se resignaram na cidade de Novosibirsk em maio e 40 trabalhadores num hospital na região de Vladimir já comunicaram intenções de demissão.
Para agravar a frustração, os profissionais de saúde dizem não ter recebido o bónus que o Governo lhes prometeu durante a pandemia. No início de abril, o presidente russo, Vladimir Putin, garantiu um aumento do salário mensal para estes profissionais: cerca de 1.100 dólares para médicos e 680 para enfermeiros e paramédicos.
Um mês depois, os profissionais queixam-se de ter recebido uma quantia até 100 vezes menos do que o prometido. Um paramédico revelou à agência AP que as quantias recebidas variam entre dois a 120 dólares, explicando que “aparentemente, eles estão a contabilizar o tempo que os médicos passam com o doente numa ambulância”.
Mais de 110 mil pessoas já assinaram uma petição online a exigir que o executivo cumpra a sua promessa e dezenas de profissionais têm participado em protestos por todo o país.
Desconfiança nos números
A Rússia é o terceiro país em todo o mundo mais afetado pela pandemia, com perto de 400 mil infetados e cerca de quatro mil mortos. Vários críticos têm confrontado o executivo russo em relação ao número relativamente baixo de mortes.
Também relativamente ao número de infetados entre a comunidade médica surgem dúvidas. Os dados oficiais de mais de 70 regiões russas registam menos de 10 mil profissionais de saúde infetados pelo novo coronavírus no mês passado, dos quais cerca de 70 não sobreviveram. Porém, os profissionais acreditam que o número de vítimas mortais no setor é muito superior e apontam para mais de 300.
A nível global, a Covid-19 já infetou mais de 5,7 milhões de pessoas e provocou cerca de 356 mil vítimas mortais.
RTP, emissora pública de Portugal