• Covid-19. Revistas científicas revêem processos editoriais após publicação de estudos polêmicos

    Publicado em 12.06.2020 às 07:53

    As prestigiadas revistas científicas Lancet e New England Journal of Medicine estão a rever os seus processos de revisão editorial depois de, no início deste mês, terem sido forçadas a retirar de publicação dois estudos sobre a Covid-19 cujas conclusões foram baseadas em dados de fiabilidade questionável.Todos os estudos publicados por estas revistas têm forçosamente de ser alvo de uma revisão científica levada a cabo por outros investigadores independentes. Este processo permite que os cientistas revisores possam identificar eventuais falhas no trabalho dos seus colegas, algo importante tendo em conta que muitos destes estudos servem de base para a tomada de decisões por autoridades de saúde de todo o mundo.

    Foi o que aconteceu com o estudo publicado em maio pela revista Lancet sobre o aumento do risco de morte em pacientes com Covid-19 a quem fosse administrada cloroquina ou hidroxicloroquina. O artigo em questão sugeria que aqueles tratados com estes medicamentos, combinados ou não com antibióticos, apresentavam mais arritmias cardíacas e maior taxa de mortalidade.

    O autor, Mandeep Mehra, baseou-se em 96 mil registos médicos eletrónicos de pacientes hospitalizados devido à Covid-19. Registos esses que foram reunidos pela empresa norte-americana de recolha de dados de saúde Surgisphere e que apenas foram colocados em causa já depois da revisão e publicação do estudo.

    A preocupação quanto à fiabilidade do estudo surgiu por parte de mais de uma centena de médicos numa carta aberta, mas chegou demasiado tarde. Por essa altura, as conclusões do artigo tinham já levado vários países – incluindo Portugal – a suspenderem o tratamento com hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19. Também a Organização Mundial da Saúde suspendeu a inclusão de doentes submetidos a esse tratamento num ensaio clínico à escala internacional.

    A Surgisphere esteve envolvida noutro estudo polémico do mesmo autor que também acabou por ser retirado, desta vez pela revista New England Journal of Medicine. Neste caso, Mehra sugeria que o uso de medicação para a tensão arterial não aumentava o risco de morte em pacientes com Covid-19.

    Desde 5 de junho, quando o estudo foi retirado de ambas as publicações, o site e a conta no Twitter da Surgisphere foram eliminados.
    Revistas revêem critérios para publicação de estudos
    Uma porta-voz da New England Journal of Medicine avançou que, após a retirada do estudo da revista no início deste mês, a publicação levou a cabo uma revisão interna do processo editorial. “Essa revisão fez-nos aprender duas coisas que vão resultar em mudanças no nosso processo”, explicou ao Guardian.

    “Temos experiência limitada no que diz respeito à revisão e publicação de estudo como este, que utilizam uma extensa base de dados de registos médicos eletrónicos”, começou por admitir. “Os revisores e editores colocaram aos autores [dos estudos] questões acerca das fontes e validade dos dados. Os editores aceitaram as respostas dos autores, em vez de pedirem a ajuda de revisores mais experientes neste tipo de dados”.

    Esta falha leva a que, “no futuro, o processo de revisão de grandes investigações baseadas em dados passe a incluir revisores com esse tipo de experiência específica”.

    Já a Lancet não foi tão específica quanto a medidas que tenciona tomar no futuro para evitar falhas como a sucedida. Ao Guardian, uma porta-voz afirmou que todos os estudos passam por uma revisão externa independente, incluindo uma revisão estatística. Quanto ao estudo que utilizou dados da Surgisphere, também esse terá sido revisto “de acordo com os procedimentos editoriais habituais” da revista.

    “Estamos a rever os nossos requisitos para a partilha de dados em estudos e para a validação entre autores”, adiantou.
    Desde que surgiu pela primeira vez, em dezembro do ano passado, o novo coronavírus já infetou mais de 7,5 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais cerca de 420 mil são vítimas mortais. São cada vez mais os estudos que procuram dar pistas sobre como travar a pandemia.

    RTP, emissora pública de Portugal