América a preto e branco
A América a preto e branco a que assistimos por estes dias não tem só a ver com as tensões raciais que tiveram, na reação à morte horrível de George Floyd, o seu momento mais grave em quase três décadas.A dicotomia marcada pela cor da pele não deveria ser decisiva no início da terceira década do século XXI – já não estamos no final dos anos 60 do século passado, nem sequer na LA de 1992, a ferro e fogo depois do caso Rodney King. A América é muitas vezes uma deceção porque continua a ser para nós, quase sempre, uma esperança” – Samuel P. Huntington, cientista político ligado aos conservadores, falecido em 2008.
Esta é também uma América a preto e branco na aceção televisiva do termo: os EUA voltaram, nestes dias de profunda perturbação nas ruas, a revelar — na sua bipolaridade constante entre a miséria a grandeza, a capacidade de encantar e a propensão para nos indignar – uma preocupante tendência para recuar décadas em temas e valores que achávamos irreversíveis.
De repente, parecia que tínhamos recuado a 1968.
Em pleno período de reconquista do Espaço, os Estados Unidos expuseram as suas fragilidades e contradições.
E tudo a pandemia revelou
País mais rico e influente do mundo, os EUA não são capazes de curar feridas capazes de cobrir de sangue e raiva a sua coesão social.
A pandemia foi o “cisne negro” que tudo destapou.
Os negros são apenas um oitavo da população americana – mas um quarto dos infetados e um terço dos óbitos pelo novo coronavírus naquele que é, de longe, o país mais casos e mais mortos.“Donald Trump é o primeiro Presidente do meu tempo de vida que não tenta unir o povo americano – nem sequer finge que o tenta fazer. Em vez disso, ele tenta dividir. Estamos a testemunhar as consequências de três anos desse esforço deliberado. Estamos a testemunhar as consequências de três anos sem uma liderança madura. As palavras Equal Justice Under Law, que os manifestantes repetem nas ruas, são precisamente aquelas que estão escritas no pavimento do Supremo Tribunal dos EUA. Donald Trump põe os americanos uns contra os outros e constitui uma ameaça à Constituição dos EUA” – general Jim Mattis, secretário da Defesa dos EUA nos primeiros dois anos da Administração Trump.
Mesmo o mês de inesperada recuperação de emprego ocorrido em maio (2,5 milhões de novos postos de trabalho), depois dos 42 milhões de empregos perdidos nos dois meses anteriores, confirmaram essas assimetrias raciais – os brancos baixaram a sua taxa de desemprego para 12 por cento, os negros aumentaram-na para 17 por cento.
O clima de desconforto e revolta nas ruas de centena e meia de cidades dos EUA resultou de uma tempestade perfeita composta por quatro fatores interligados e, nalguns aspetos, contrastantes: a pandemia com efeitos sociais profundamente assimétricos (os mais vulneráveis, mais pobres e menos saudáveis sofreram muito mais); o vídeo do assassinato policial de George Floyd (quem viu e ouviu não esquecerá); a vertigem económica de, em dois meses, a América ter passado do mais baixo desemprego em meio século para o mais alto em oito décadas; a proximidade da eleição presidencial (só a ideia de Trump por mais quatro anos é uma espécie de afronta para milhões de negros nos EUA).
Num país com mais armas legais (390 milhões) que pessoas (330 milhões, o papel da polícia deve ser repensado: a Reforma Policial era uma das principais reivindicações dos cartazes que se viam nos primeiros dias de protesto – mas também é verdade que o risco corrido por muitos agentes da Lei nos EUA, tendo em conta a quantidade inimaginável de armas nas mãos de pessoas que poderão causar ameaça à integridade física em poucos segundos.
Haver violência decorrente de episódios de abuso policial ou atos racistas não é novidade na América. O que é perturbadoramente novo é ver o Presidente a dividir em vez de unir.
Um extremista sonso na Casa Branca
Sem narrativa que o livrasse do falhanço total na gestão da pandemia, Donald Trump viu no resvalar da violência dos protestos a sua oportunidade de jogar a carta de “Lei e Ordem”.
Para já, as sondagens mostram que a estratégia lhe está a sair furada.“A atual situação nas ruas não configura motivo para acionar o Insurrection Act. Discordo do uso de militares para travar os manifestantes” – Mark Esper, secretário da Defesa dos EUA.
Mas a desconcertante capacidade que o atual Presidente dos EUA tem de jogar em dois tabuleiros não deve ser menorizada: Trump, que garante ter “imensos amigos e apoiantes negros”, até teve a desfaçatez de marcar um regresso aos comícios para Tulsa, Oklahoma, no 99.º aniversário de massacre de ressentimento branco contra negros, em junho de 1921. As reações foram tão negativas que Donald acabou por recuar.
Donald Trump é um extremista sonso – agride e depois diz que não agrediu. Insulta e depois diz que não insultou.
Atira a pedra e esconde a mão. Vai, com essa ambiguidade, energizando a sua base branca, que se assusta com o crescimento das minorias e pende para um racismo mais ou menos assumido.
Corteja, sem assumir, uma ala supremacista branca em ascensão desde 2016. Mas nunca descura a possibilidade eleitoral de beneficiar de votos de pessoas menos atentas a questões retóricas e apenas olham para o dinheiro que têm na carteira.
Não é “ideologia”. É mesmo só obsessão por conseguir ser reeleito.
Daron Acemoglu, na Foreign Affairs, identifica o “deslaçar da Democracia americana”: “Os países falham do mesmo modo que os negócios: primeiro lenta e gradualmente, depois subitamente”.
Duas linhas vermelhas
Há vários momentos nestes três anos e meio de uma presidência que vandaliza o legado do “fardo glorioso” (glorious burden) que podem vir a ser lembrados como “linhas vermelhas” ultrapassadas pelo atual inquilino da Casa Branca.
Nos últimos dias, houve pelo menos dois episódios que concorreram com forte probabilidade para entrar nessa lista infame de situações em que o Presidente dos EUA desrespeitou a dimensão do seu legado e das suas obrigações.“Se a culpa é minha posso pô-la em quem eu quiser” – Homer Simpson, personagem da série Os Simpsons.
O primeiro foi aquele lamentável número em que mostrou a bíblia em frente a uma igreja de Washington DC, depois de ter mandado dispersar uma manifestação pacífica com gás lacrimogéneo e balas de borracha. “Os nossos cidadãos não são nossos inimigos”, lembrou, de pronto, o General John Allen, ex-comandante das forças militares americanas no Afeganistão.
O segundo momento indecoroso foi a ameaça de enviar os militares para travar manifestantes nas ruas. Donald Trump terá chegado a apresentar um plano que previa a colocação de dez mil militares – rapidamente travado pelo Pentágono.
A desautorização por parte das elites militares, que nos EUA são profundamente democráticas e respeitadoras da Constituição do seu dever de servir os cidadãos, pôs a nú a clara incompetência do atual Presidente norte-americana em saber lidar com o complexo sistema que lidera.
Os anos Trump são marcados por uma constante tensão, com alguns momentos de disrupção, entre a visão autoritária e egocêntrica do Presidente e as garantias de verificação e respeito pelos diferentes poderes.
No próximo dia 3 de novembro (se as eleições não forem adiadas), o eleitorado americano terá que fazer uma escolha que vai muito para lá da mera opção entre Joe Biden e Donald Trump.
Avalizar um segundo mandato de um Presidente que tem dado constantes provas de desrespeito e desdém pelo Estado de Direito poderá ser um ponto de não retorno.
O grande problema é saber se boa parte dos eleitores americanos têm a verdadeira noção da bomba que têm nas mãos: vão detoná-la ou saberão desmontá-la?
Uma história com dupla face
Enquanto escrevia esta crónica estava a ouvir a versão cantada por Caetano Veloso de Black and White, de Michael Jackson.
“And I told about equality and it’s true
Either you’re wrong or you’re right
But, if you’re thinkin’ about my baby
It don’t matter if you’re black or white
I am tired of this devil
I am tired of this stuff
I am tired of this business
Sew when the going gets rough
I ain’t scared of your brother
I ain’t scared of no sheets
I ain’t scared of nobody”.
A América terá sempre essa dupla face: a preto e branco.
RTP, emissora pública de Portugal