“Vamos negar a cama aos pacientes em maior risco de morte”. As instruções de um hospital em Madrid no pico da pandemia
Um vídeo de uma sessão clínica no hospital em Parla, Madrid, mostra que o sistema de saúde estava preparado para excluir os idosos doentes. Na gravação, de março, um chefe médico dava instruções à equipa e revela que os profissionais de saúde se preparavam para negar assistência aos idosos. No vídeo, dado a conhecer pelo El País, o médico diz cruamente que os idosos dos lares já tinham sido excluídos do tratamento. “Isto é um trauma. Vamos negar a cama aos doentes em maior risco de morte, mas temos de a reservar para aqueles cujas vidas mais podemos salvar”, ouve-se o médico dizer, sobre a necessidade de triagem.
O vídeo foi gravado no Hospital Infanta Cristina em Parla, a sul da capital, no âmbito de uma sessão preparatória de um cenário de colapso hospitalar iminente, revela o El País.
“Isto é uma mudança de chip, está bem? Nenhum de nós está preparado para isso. Eu sei”, diz o médico. “Essa decisão virá do topo”, acrescenta.
Um fragmento de sete minutos tinha circulado no Youtube desde o final de Março, sem que a sua origem ou veracidade fossem certas. O hospital pediu que fosse retirado, mas o Youtube não o retirou.
O hospital partilhou com o jornal o resto da conversa do instrutor, cujo rosto e voz foram distorcidos pelo El Pais no vídeo mostrado neste artigo.
O instrutor da sessão disse ao El País que usou certas expressões “cintilantes” como um gancho para chamar a atenção da sua equipa.
Um porta-voz do hospital diz agora que a sessão teve lugar na segunda ou terceira semana desse mês para preparar a equipa para um momento crítico. O workshop de 19 minutos foi gravado.
A sessão teve lugar num momento crítico dos hospitais de Madrid, quando apenas 400 camas de 1.000 Unidades de Cuidados Intensivos estavam disponíveis. A taxa de admissão nestas enfermarias era de 133 por dia, segundo o instrutor. Os doentes acumulavam-se em corredores, deitados em tapetes ou sentados em cadeiras, e faltavam recursos básicos.
O instrutor avisou os internistas que, ao ritmo a que avançavam as admissões nos hospitais da Comunidade de Madrid, a região iria entrar em colapso nos cuidados intensivos em 48 horas. Revela-lhes que a rejeição dos idosos será imposta pelas autoridades sanitárias e que a única margem que lhes resta para salvar essas vidas é ser mais rigorosa com a avaliação dos jovens doentes com bons prognósticos que até possam ir para casa.
“É possível que, nas próximas semanas, seja negada a entrada no hospital a um paciente de x anos, porque precisamos da cama para outro paciente que mais beneficiará com ela. Isto é um trauma. Vamos negar a cama aos doentes em maior risco de morte, mas temos de a reservar para aqueles cujas vidas mais podemos salvar”, acrescenta.
A “teoria dos parênteses”.
Com a ajuda de slides, o médico-chefe inicia uma sessão chamada “teoria dos parênteses”. O nome é uma metáfora para explicar que apenas a população doente dentro dos parênteses teria acesso ao hospital. Nos dias seguintes, os parênteses apertar-se-iam como uma pinça. Um lado do parêntesis seria movido pelas autoridades políticas, excluindo os idosos vulneráveis, e o outro pelo hospital, deixando de fora os doentes jovens com menos risco.
“Isso é drástico. Isto é horrível. Quem me dera que não tivéssemos tido de viver este período”, reforça o instrutor.
O chefe da equipa dá informações contraditórias sobre quem impõe a triagem dos idosos nos hospitais de Madrid. Refere-se a ordens do ministério e da Comunidade de Madrid.
A situação de uma triagem de doentes foi denunciada pelos jornais espanhóis, expondo na altura os protocolos de triagem distribuídos pelo governo regional de Madrid e que visavam pessoas dependentes, pessoas com deficiência e pessoas com mais de 80 anos de idade.
O instrutor revela também que, na mesma manhã, tinha sido aprovada uma autorização para a aplicação da lei para retirar doentes ainda doentes e que estavam relutantes em ir para casa. Aconselha os seus colegas a não hesitarem em tomar essa decisão difícil. “Se não o fizeres, haverá alguém, um funcionário que dirá ‘não cumpre os critérios de admissão’ e trará a polícia e tirá-lo-á do hospital mesmo que não queiras”, diz ele à sua equipa.
Insiste em que devem receber ordens dos decisores políticos por muito que discordem e que os novos critérios representam um desafio ético sem precedentes para as suas carreiras.
Hospital garante que nunca recusou idosos
O porta-voz do hospital disse que o hospital nunca recusou pacientes por causa da sua velhice. “A ninguém foi negado tratamento se era a coisa certa a fazer”, sublinhou ao jornal espanhol.
Os familiares de idosos que estavam em lares do município contam ao jornal uma versão diferente, argumentando que os pais morreram por falta de cuidados hospitalares.
O pai de Julia Miron morreu no dia 5 de abril de covid-19, após dias em estado grave na residência do grupo Vitalia em Parla. “Durante todo o tempo em que esteve doente, em nenhum momento a direção do centro ou o Departamento de Saúde de Madrid levou o meu pai ao hospital, onde poderia ter havido uma hipótese de salvar uma pessoa, mesmo que tivesse 87 anos de idade”, disse Mirón.
Mais de 400 filhos e netos aderiram aos processos contra a Comunidade de Madrid e várias residências por terem negado ajuda. Cerca de 6.000 pessoas morreram em casas de Madrid devido à covid-19.
RTP, emissora pública de Portugal