“Vamos negar a cama aos pacientes em maior risco de morte”. As instruções de um hospital em Madrid no pico da pandemia

Publicado em 18.06.2020 às 09:03

Um vídeo de uma sessão clínica no hospital em Parla, Madrid, mostra que o sistema de saúde estava preparado para excluir os idosos doentes. Na gravação, de março, um chefe médico dava instruções à equipa e revela que os profissionais de saúde se preparavam para negar assistência aos idosos. No vídeo, dado a conhecer pelo El País, o médico diz cruamente que os idosos dos lares já tinham sido excluídos do tratamento. “Isto é um trauma. Vamos negar a cama aos doentes em maior risco de morte, mas temos de a reservar para aqueles cujas vidas mais podemos salvar”, ouve-se o médico dizer, sobre a necessidade de triagem. 

O vídeo foi gravado no Hospital Infanta Cristina em Parla, a sul da capital, no âmbito de uma sessão preparatória de um cenário de colapso hospitalar iminente, revela o El País.
“Isto é uma mudança de chip, está bem? Nenhum de nós está preparado para isso. Eu sei”, diz o médico. “Essa decisão virá do topo”, acrescenta.
Um fragmento de sete minutos tinha circulado no Youtube desde o final de Março, sem que a sua origem ou veracidade fossem certas. O hospital pediu que fosse retirado, mas o Youtube não o retirou.
O hospital partilhou com o jornal o resto da conversa do instrutor, cujo rosto e voz foram distorcidos pelo El Pais no vídeo mostrado neste artigo. 

O instrutor da sessão disse ao El País que usou certas expressões “cintilantes” como um gancho para chamar a atenção da sua equipa.
Um porta-voz do hospital diz agora que a sessão teve lugar na segunda ou terceira semana desse mês para preparar a equipa para um momento crítico. O workshop de 19 minutos foi gravado.
A sessão teve lugar num momento crítico dos hospitais de Madrid, quando apenas 400 camas de 1.000 Unidades de Cuidados Intensivos estavam disponíveis. A taxa de admissão nestas enfermarias era de 133 por dia, segundo o instrutor. Os doentes acumulavam-se em corredores, deitados em tapetes ou sentados em cadeiras, e faltavam recursos básicos.
O instrutor avisou os internistas que, ao ritmo a que avançavam as admissões nos hospitais da Comunidade de Madrid, a região iria entrar em colapso nos cuidados intensivos em 48 horas. Revela-lhes que a rejeição dos idosos será imposta pelas autoridades sanitárias e que a única margem que lhes resta para salvar essas vidas é ser mais rigorosa com a avaliação dos jovens doentes com bons prognósticos que até possam ir para casa.
“É possível que, nas próximas semanas, seja negada a entrada no hospital a um paciente de x anos, porque precisamos da cama para outro paciente que mais beneficiará com ela. Isto é um trauma. Vamos negar a cama aos doentes em maior risco de morte, mas temos de a reservar para aqueles cujas vidas mais podemos salvar”, acrescenta.
A “teoria dos parênteses”.
Com a ajuda de slides, o médico-chefe inicia uma sessão chamada “teoria dos parênteses”. O nome é uma metáfora para explicar que apenas a população doente dentro dos parênteses teria acesso ao hospital. Nos dias seguintes, os parênteses apertar-se-iam como uma pinça. Um lado do parêntesis seria movido pelas autoridades políticas, excluindo os idosos vulneráveis, e o outro pelo hospital, deixando de fora os doentes jovens com menos risco.
“Isso é drástico. Isto é horrível. Quem me dera que não tivéssemos tido de viver este período”, reforça o instrutor.
O chefe da equipa dá informações contraditórias sobre quem impõe a triagem dos idosos nos hospitais de Madrid. Refere-se a ordens do ministério e da Comunidade de Madrid. 

A situação de uma triagem de doentes foi denunciada pelos jornais espanhóis, expondo na altura os protocolos de triagem distribuídos pelo governo regional de Madrid e que visavam pessoas dependentes, pessoas com deficiência e pessoas com mais de 80 anos de idade.
O instrutor revela também que, na mesma manhã, tinha sido aprovada uma autorização para a aplicação da lei para retirar doentes ainda doentes e que estavam relutantes em ir para casa. Aconselha os seus colegas a não hesitarem em tomar essa decisão difícil. “Se não o fizeres, haverá alguém, um funcionário que dirá ‘não cumpre os critérios de admissão’ e trará a polícia e tirá-lo-á do hospital mesmo que não queiras”, diz ele à sua equipa.
Insiste em que devem receber ordens dos decisores políticos por muito que discordem e que os novos critérios representam um desafio ético sem precedentes para as suas carreiras. 
Hospital garante que nunca recusou idosos
O porta-voz do hospital disse que o hospital nunca recusou pacientes por causa da sua velhice. “A ninguém foi negado tratamento se era a coisa certa a fazer”, sublinhou ao jornal espanhol. 

Os familiares de idosos que estavam em lares do município contam ao jornal uma versão diferente, argumentando que os pais morreram por falta de cuidados hospitalares. 

O pai de Julia Miron morreu no dia 5 de abril de covid-19, após dias em estado grave na residência do grupo Vitalia em Parla. “Durante todo o tempo em que esteve doente, em nenhum momento a direção do centro ou o Departamento de Saúde de Madrid levou o meu pai ao hospital, onde poderia ter havido uma hipótese de salvar uma pessoa, mesmo que tivesse 87 anos de idade”, disse Mirón.
Mais de 400 filhos e netos aderiram aos processos contra a Comunidade de Madrid e várias residências por terem negado ajuda. Cerca de 6.000 pessoas morreram em casas de Madrid devido à covid-19.

RTP, emissora pública de Portugal