• Lula: “Brasil nasceu para liderar desenvolvimento na América Latina”

    Publicado em 5.09.2020 às 12:14

    O  Brasil só voltará a ser dono do próprio destino quando recuperar sua vocação histórica para ser protagonista do desenvolvimento da  América Latina. Para isso, é preciso resistir à submissão imposta pela massacrante agenda neoliberal norte-americana. A avaliação é do ex-presidente Luiz Inacio  Lula da Silva, em  entrevistaconcedida à  revista Fórum’, na sexta-feira (4). 

    Durante mais de duas horas,  Lula conversou com jornalistas e colaboradores do portal sobre a ascensão internacional do Brasil durante seu governo e a reação americana que levou à  Lava Jato e ao  golpe de 2016. Também falou sobre a  rede de  fake news de  Bolsonaro e dos desafios do  Partido dos Trabalhadores diante da crise do trabalho e da ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo, entre outros assuntos. A seguir, os principais trechos da conversa. 

    “O Brasil não precisa ser subordinado aos  EUA, não pode ter um presidente que faz o que o Bolsonaro faz, bater continência para a bandeira americana”, criticou Lula, pra quem Bolsonaro, além de desumano, “é um lambe-botas do  Trump”. Para líder petista, o Brasil nasceu para ser protagonista internacional, com papel fundamental na América Latina. 

    “Nascemos para ser o carro-chefe do desenvolvimento na América Latina”, sustenta Lula. “O Brasil nasceu para ser parceiro dos países africanos, não para importar escravos, mas para exportar tecnologia. Nossa dívida com a África é impagável, não é possível mensurar em dinheiro”, pontuou. 

    Na entrevista, Lula fez uma avaliação dos motivos por trás de golpes históricos que impediram o progresso da America Latina, em especial do Brasil, vítima do mais recente, em 2016.  “Todos os golpes na América Latina têm o dedo dos EUA”, disse Lula. “A Lava jato, espalhada pela América Latina, tem o dedo do Departamento de Justiça americano. Aqui na América Latina [eles] dão o golpe quando fazemos  política pública”. 

    O ex-presidente sustenta que o  PT foi retirado do governo porque teve a petulância de virar protagonista internacional durante o mandato dele. Segundo Lula, o Brasil passou a ser levado a sério pela  China, pela Russia e até pelos EUA, o que levou a um grande descontentamento entre os americanos. “O Brasil era para ser uma colônia”, lembrou.

    Integração latino-americana

    O presidente destacou as iniciativas inéditas seu governo que causaram impacto profundo no processo de integração da Região, como a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), o Conselho Sul-Americano de Defesa, além da ampliação do Mercosul. Além disso, a diplomacia do ministro das Relações Exteriores,  Celso Amorim, resgatou laços históricos com a África e os países árabes, e pavimentou o caminho para a criação do bloco dos  BRICS.

    “Quando criamos o BRICS, qual foi o medo dos americanos? A criação de uma moeda própria para desbancar o dólar”, aponta Lula. “A gente não queria desbancar o dólar, a gente queria ter uma moeda para que o nosso comércio não dependesse do dólar. Aí acharam que o Brasil estava [indo longe] demais”.

    A situação se tornou insustentável para os EUA quando o Brasil descobriu o  pré-sal, levando o governo americano a recuperar a Quarta Frota naval, desativada desde o fim da Segunda Guerra. Os americanos cresceram o olho para cima do pré-sal que, na visão desenvolvimentista de Lula, era uma riqueza natural fundamental para a  soberania nacional.

    “Aí nós criamos o Conselho de Defesa Sul-Americano, para nos proteger. Foi quando eles falaram, “esse Lula está demais, essa  Dilma está demais, estão enchendo o saco. Sabe de uma coisa, vamos tirar logos eles daí”. Aí inventaram a Lava-Jato”, resumiu Lula.

    Novos caminhos

    Para o ex-presidente, o cenário atual de desastre econômico do  governo Bolsonaro, que acelera a precarização e o  desemprego, poderá trazer uma oportunidade para a esquerda apresentar novos caminhos ao país. Mas é preciso fazer a disputa política, liderar o debate. “A revolução tecnológica, digital, que mexeu com o mundo do trabalho, melhorou a vida de menos gente do que a quantidade de pessoas que jogou fora do mercado”, ponderou Lula. 

    “Precisamos ter ousadia para discutir a questão do emprego pós- pandemia”, propôs. “Se depender do governo, ele está desmontando tudo o que conhecíamos: carteira profissional,  previdência… Não é piorando a situação do povo brasileiro que as coisas vão melhorar”, diz. Além disso, é preciso chamar os jovens para o debate, que são a força criativa do país. “Precisamos envolver a sociedade, chamar a juventude pra participar da definição de políticas. Porque muitas vezes eles sabem mais do que nós”, defendeu.

    Orçamento participativo

    Lula lembrou dos modelos de governança e de  políticas públicas que já trouxeram resultados extraordinários ao país, como o  orçamento participativo implantado pelo partido desde as primeiras prefeituras conquistadas. 

    “A  arma mais importante que o PT colocou na praça, em 1982, quando ganhou a primeira prefeitura de Diadema e depois, Porto Alegre e  São Paulo, foi criar a certeza de que o povo poderia elaborar o orçamento da cidade, decidir que obra era necessária e onde seria feita”, discorreu. Estava nas mãos do povo decidir se a obra seria uma escola, uma praça ou um parque, frisou.

    “Foi tão revolucionário que a  ONU passou a orientar o mundo a utilizar o modelo de orçamento participativo do Brasil. Isso caiu um pouco no esquecimento, mas quem tem que defender isso é o PT”, cobrou. “É um legado, uma criação do PT. E era motivo de orgulho, nossos prefeitos iam debater em países africanos, asiáticos, latino-americanos sobre os modelos”, pontuou. ”Não podemos nunca perder de vista para quem queremos governar”, alertou o petista.

    Fake News e milicianos

    Lula disse considerar que o eleitorado de Bolsonaro nas últimas eleições pode votar novamente no PT. “São brasileiros, que votaram de acordo com a quantidade de informações recebida, milhões votaram com a quantidade de mentiras passadas pelo  whatsapp, por fake news”, destacou. “Temos que mostrar que é possível retomar o Brasil, democratizar e humanizar o país e fazer com que as pessoas voltem a sonhar”.

    Para que isso ocorra, o PT deve inserir-se mais no mundo digital, fazer o embate e combater as fake news. E não apenas, argumentou, para melhorar o conteúdo das informações e enfrentar as falsas notícias, mas para que a mídia digital seja séria, competitiva e respeitada. Ele apontou para iniciativas fundamentais, como os cursos e debates promovidos pela  Fundação Perseu Abramo, instrumento de geração de conhecimento do PT. 

    “Não pode ser uma mídia pior do que a mídia tradicional que nós queremos combater”, advertiu o líder petista. “Nunca tivemos uma República governada por um monte de milicianos, nunca tivemos uma situação de gente que saiu das páginas policiais para a política. Esse é o desafio: É responsabilidade do povo brasileiro não permitir que a  mentira prevaleça”, convocou. 

    Desumanização e violência

    Lula não vê possibilidade de o Brasil melhorar com Bolsonaro. “Ele teve a chance de se humanizar na pandemia do  coronavírus, mas preferiu continuar mentindo, falando em  cloroquina, e que o povo tinha que voltar a trabalhar”, acusou.

    “Ele não tem respeito pelas pessoas que perderam seus parentes, pelas vítimas. Ele não tem dó de que nesse país já tenhamos quase 130 mil mortos. É uma figura que tem o comportamento desumano. Ele só colocou o rabo entre as pernas agora por causa do  Queiroz, [das acusações contra] os filhos”, disse. 

    Agora, é preciso mudar o tom da conversa, acredita Lula. “Nunca imaginei que pudéssemos ter tanta desumanização, a sociedade brasileira foi transformada em algoritmo”, lamentou, citando a intolerância, o ódio e a  violência insuflados por Bolsonaro.  

    “Se tem uma coisa que Bolsonaro não mentiu para a sociedade é que ele queria uma polícia mais violenta, que matasse, que o povo comprasse armas… O que está acontecendo é resultado da cabeça miliciana do Bolsonaro”, observou, comentando os altos índices de violência contra moradores da periferia, sobretudo negros. 

    Segundo o ex-presidente, a desmilitarização não é suficiente para o país superar o qaudro atual. “O que precisamos fazer é mudar a cabeça das pessoas. É preciso criar uma mentalidade na sociedade, que está tomada pelo ódio, pela agressividade, pelo preconceito, pelo  racismo”, argumentou. Para Lula, o ódio de classe é alimentado pelos meios de  comunicação “há muito tempo, esse ódio não brotou do nada”. 

    Movimento negro

    Em contraponto ao massacre das minorias promovido pelo governo de Bolsonaro, Lula destacou os avanços no combate ao racismo das administrações petistas, como a criação inédita da Secretaria de  Igualdade Racial, que ajudou a abrir caminho para o Estatuto da Igualdade Racial. 

    Ele também citou progressos para a identidade da população negra, a exemplo da obrigatoriedade de escolas públicas passarem a oferecer cursos sobre a história e  cultura afro-brasileira. “Eu dizia que a gente não acabaria com o racismo no brasil se a gente não criasse um novo modelo de  educação onde contássemos a história da presença negra nesse país, como ela foi de verdade”, lembrou Lula. 

    Volta às aulas

    Sobre a volta às aulas, Lula afirmou que é preciso ter cautela no debate e que ciência que deve apontar os caminhos a serem seguidos pelas autoridades. “Não é possível tomar uma decisão sem ouvir a ciência, sem ouvir os pais e sem ouvir os educadores. Se houvesse prudência das pessoas que governam, era melhor dar o ano como perdido e fazer com que o ano que vem fosse mais qualificado”, defende. 

    Essa melhoria na qualificação do ensino passa democratização digital, aponta Lula. A começar pelo Estado, que “deve prover computadores para cada criança para que aprendam a conviver no mundo digital”, sugeriu.